Uma narrativa de José Sanches Pereira
O grito soou na noite: – ACUDAM QUE HÁ FOGO NAS EIRAS. Tinha-me deitado ainda há pouco tempo. Naquelas noites quentes de verão, suaves e calmas com o céu descoberto, sentia uma sensação de frescura e bem-estar, quando me sentava na varanda da casa de meus sogros (que descansem em paz).
Por isso, sempre que ia a Vale de Espinho, ficava longos momentos na contemplação do firmamento, desprendia o espírito para que vagueasse e admirasse esse quadro maravilhoso pintado por mãos invisíveis onde o Artista consegue fixar com pinceladas maravilhosas, o sublime, a doçura e a beleza de tal modo fundidos que na sua meditação, sentimos o que se não vê, mas que os homens e os povos levam dentro de si. Plenamente reconfortado, depois de um dia de trabalho, dormia despreocupado, saboreando o sono gulosamente, nessa paz de espírito que só nas aldeias conseguimos encontrar, quando de repente fui despertado por um grito angustiante. -ACUDAM QUE AS MEDAS DO PÃO ESTÃO A ARDER.
Saltei repentinamente da cama e ainda não tinha apertado os sapatos, já os sinos do campanário davam o sinal de alarme. Não era aquele repicar alegre e contente próprio dos domingos e dias festivos como só o LEI ONZE sabia tocar. Era um verdadeiro artista a manusear os badalos dos dois sinos quando chamava para a missa Dominical. Tirava sons dos sinos como se fossem notas arrancadas a um piano pelas mãos dum profissional. Também não era o dobrar pesado e triste dos funerais, ou o toque acabrunhado da missa das almas, nem tão pouco o badalar suave e doce das Trindades quando ao entardecer convidava a população para uma oração a Deus, em agradecimento pela ajuda no árduo trabalho dessa labuta diária. Era antes um repicar apressado, ansioso, aflitivo que nos esmagava o peito e nos feria a alma; Um som angustiante, clamoroso que cortava a noite como o uivar do vento em dias de tempestade que penetrava dentro de todas as casas, fustigando cada pessoa, eletrizando-a, implorando-lhe socorro.
Não há ninguém na aldeia, nem pobre nem rico, velho ou novo, homem ou mulher que consiga ficar indiferente ao infernal encanto deste badalar. Os gritos desesperados das pessoas que com caldeiros na mão, corriam para as eiras onde estavam os molhos do centeio, confundiam-se com intenso repicar dos sinos, numa amálgama de barulho, de desordem e de confusão. Dirigi-me apressadamente para as eiras e ao chegar deparei-me com um espetáculo pavoroso, verdadeiramente dantesco.
De uma meda de centeio com mais de cem molhos irrompiam as labaredas para o céu, iluminando todo o recinto, soltando-se em línguas de fogo e procurando, como os tentáculos de um enorme polvo, alcançar todas as outras que a rodeavam. O centeio crepitava como sal em cima de brasas e uma imensa nuvem de fumo, impregnada de um forte cheiro a queimado, tornava o ambiente horroroso e maquiavélico. -Tragam água…Tragam água…Pediam vozes sufocadas pelo fumo e pela emoção. De todas as partes surgiam baldes de água para ser arremessada para cima das medas pelos homens, enquanto as mulheres, num vai e vem constante, do chafariz para as Eiras, mantinham a certeza duma esperança. Da Barreira vinham gritos alucinantes e comovedores: -Acudam…Acudam…Que arde tudo. Ai Nossa Senhora…Valha-nos Deus… O ataque ao incêndio intensificava-se e a cada momento aumentava o número de pessoas a acarretar água. Ao meu lado, alguém com a voz embargada e num choro convulsivo dizia: -Ai pai, o que vai ser de nós…Ai o nosso rico pãozinho…Tanto trabalho pai, tanto trabalho, para num instante ficarmos sem nada. O que vamos comer durante o ano? -Deixa lá, reconfortava-a uma voz, não há pão comem-se batatas. -Mas os nossos batatais estão cheios de mal murcho. – Nosso Senhor há-de providenciar. Ninguém vai morrer à fome.
É extraordinária a nossa terra quando surgem casos destes. A união fortalece-nos, a desgraça comove-nos, as inimizades dão lugar ao perdão e todos os esforços se conjugam no sentido de salvar o que está em perigo, numa verdadeira lição de amor para com o próximo. A água caindo constantemente sobre o fogo, abafava-o e pouco a pouco dominava-o. As labaredas iam perdendo o fulgor inicial, o grão deixava de crepitar, os corações batiam mais compassados e a esperança voltava ao olhar de todos nós. -Valeu-nos Nossa Senhora…disse alguém ao meu lado que já não conheci, porque a claridade desaparecera e o fogo não era mais do que uma ténue nuvem de fumo, com os últimos espasmos como quem vai deixar de existir. Rezava-se para que não soprasse vento, pois caso viesse a acontecer, as chamas ter-se-iam ateado ao restante centeio e em Vale de Espinho, nessa noite, não ficaria num único molho por arder.
Comentava-se, no dia seguinte, qual teria sido a causa do incêndio. Uns culpavam a ponta de qualquer cigarro, porém outros atribuíam as causas ao castigo de Deus. – O senhor padre, bem tem avisado que Nosso Senhor não dorme e que em qualquer momento a sua mão justiceira cairá sobre nós se nos afastarmos dos preceitos religiosos. – Lembrava a senhora Isabel Augusta. No domingo seguinte, os sinistrados tiveram uma recompensa divina. Do alto do púlpito o senhor padre Cândido, antes de iniciar a Homilia Dominical declarou com uma voz sacramental: TODOS OS PAROQUIANOS QUE FORAM AFETADOS PELO INCÊNDIO ESTE ANO NÃO PAGAM A CÔNGRUA.