Morcela Girana (Vale de Espinho, Sabugal)

8 de Março, 2024

Uma narrativa de José Sanches Pereira

Morcela Girana

Decorriam os anos quarenta.

Nesta época, Vale de Espinho era uma arca cheia de misérias e privações. Poucas eram as pessoas que dispunham de bons meios de subsistência. Não havia ricos. Havia pessoas remediadas que por possuírem algumas propriedades agrícolas, embora com pequenas áreas, os solos eram férteis, originando maiores proventos e uma vida mais desafogada, sem grandes constrangimentos económicos. Contudo, a maioria da população, dispunha apenas de umas pequenas glebas, pouco produtivas, cujo rendimento mal dava para o sustento do clã familiar.

Dizia-se que Jesus Cristo não tinha passado por esta terra.

Embora o rio Coa banhasse algumas veigas bastante férteis ao longo do seu percurso, o clima agreste, obstaculizava grande parte das culturas, suscetíveis de dar melhores rendimentos. Digamos que essas culturas se resumiam à batata, ao feijão, milho e centeio. Este último era cultura principal da freguesia. O centeio e a batata constituíam a base alimentar da população. As árvores de fruto limitavam-se a umas macieiras e pereiras bravas, dispersas por alguns lameiros e vinhas. Comia-se a fruta que vinha dos lados do Salvador; Figos, ameixas, pêssegos, uvas, tudo o que Vale de Espinho não produzia. As laranjas vinham de Valverde. Quando não havia dinheiro para comprar essa fruta, trocava-se por outros produtos; um quarteirão de figos por uma malga de feijão, um quilo de uvas por meia dúzia de ovos, laranjas por batatas, enfim, tudo dentro deste sistema. A maioria das vezes a troca era “cheio por cheio” isto é, uma malga cheia de figos secos por uma malga cheia de feijão. Este intercâmbio era frequente, dado a exiguidade de dinheiro existente.

O vinho era um “graminês “ que, ao bebê-lo, dava fortes arrepios, mas não ficava por beber. A oliveira, cultura que definia a riqueza duma região, em Vale de Espinho não tinha lugar. O clima deixava-a vegetar, mas não a deixava produzir.

Praticava-se uma agricultura de subsistência. Das territas iam-se tirando os produtos que ao longo do ano se iam consumindo. Economizava-se o máximo para conseguir vender as sobras e deste modo, obter algum dinheirito para outras necessidades.

Durante todo o ano, como complemento, comia-se a carne de porco e os enchidos, as batatas, o pão centeio e o queijo. Não muito frequentemente comprava-se uma fressura de cabrito ou borrego e muito raramente um bocado de carne, desses mesmos animais.

A pastorícia era uma das atividades com grande expressão. Talvez fosse a mais importante e lucrativa de todas as elas. Havia um elevado número de rebanhos de cabras. Esta espécie era a que melhor se adaptava, dadas as características da flora e da orografia existente na região. O leite, o queijo, os cabritos, e a pele originavam consideráveis rendimentos.

O rio Coa, muito rico em trutas e barbos, também contribuía para melhorar a alimentação daqueles que pescavam.

A estrutura fundiária, já de si deficiente, agravava-se constantemente dado que, devido ao grande número de filhos que os casais tinham, pela morte dos cônjuges, as parcelas de terrenos eram repartidas entre eles.

Sucedeu com o tio António Bogueiro que possuía uma boa casa agrícola, quando morreu, as propriedades ficaram praticamente pulverizadas, pois foram divididas pelos dez filhos ainda vivos, dos quinze que tinham nascido.

O número elevado de filhos que os casais tinham, não era só devido à falta de planeamento familiar, mas resultava também, da necessidade da casa ter mais braços para trabalhar. Assim que a idade o permitia, os filhos não só trabalhavam para a casa, aumentando consequentemente o rendimento, como ganhavam dinheiro noutras atividades, entregando essas importâncias ao pai. Desta forma, a casa prosperava e o património aumentava.

Foi assim que o tio António Bogueiro aumentou a sua casa agrícola. Quando casaram, os pais deram-lhes alguns palmos de terra; Um chão regadio nas aleguinhas, uma tapada com meia dúzia de carvalhos às braciosas e um lameirito ao mostajal. Quando os filhos começaram a trabalhar, todos os anos comprava um prédio e assim conseguiu prosperar e redimensionar a sua casa agrícola.

Havia, porém, uma cultura de excelência em Vale de Espinho que apoiava e melhorava o rendimento dos que a possuíam. Referimo-nos ao castanheiro. Nesta época, esta freguesia possuía, paralelamente com o Soito, a maior área de castanheiros do concelho do Sabugal.

A castanha era uma fonte muito importante na economia, não só para as pessoas que a possuíam, como até para a própria aldeia. Na época da sua produção, tornava-se um dos alimentos principais das pessoas mais modestas. O almoço (refeição comida de manhã) era unicamente constituída por um púcaro de castanhas cozidas. A ceia (refeição da noite) terminava com um assador repleto de castanhas. O assador era colocado no centro da lareira, cada um descascava o maior número de castanhas possível, para guardar e comer posteriormente.

Pilavam-se as castanhas que tinham sido secas no caniço, colocado por cima do lume, com as quais se fazia o saboroso e nutriente “caldudo”.

Com as castanhas terminavam a ceva do porco e ainda se vendia uma boa parte, para custear outras necessidades.

Nesta época, as possibilidades em conseguir ganhar algum dinheiro eram muito relativas. Não havia indústria, não havia comércio, os salários eram muito baixos, as jornas não tinham horário, trabalhava-se de sol a sol e dificilmente se conseguia algum trabalho. Os lavradores que possuíam uma junta de vacas ainda se iam defendendo. Cobravam a jeira a bom preço, tinham direito ao jantar (refeição do meio dia) e durante o dia ainda bebiam uma pinga.

Uma outra atividade, embora praticada por poucas pessoas, era a apicultura. Havia apicultores com grandes conhecimentos do segredo das abelhas. Era o caso do ti Grancho, talvez o melhor e o maior tratador de abelhas em Vale de Espinho. Produzia um mel de excelente qualidade. Tinha as suas colmeias em Pesqueiro, uma zona espanhola confinante à povoação, com um clima ameno e grande diversificação floral, onde predominavam as estevas, a carqueja, a urze, a canaveira e o rosmaninho, flora esta que conferiam ao mel um sabor muito peculiar. O mel para esses apicultores, era uma fonte de bom rendimento e viviam, praticamente, da venda do mel e da cera.

Aqueles que não se conformavam com essa situação, recorriam ao contrabando. Os mais novos e bem encorpados levavam o “carrego” de volfrâmio para Espanha, trabalho que era bem remunerado, mas muito arriscado. Corriam o perigo de serem apanhados pela guarda- fiscal ou pelos carabineiros e ficarem sem carrego e sem dinheiro. Muitas vezes perdiam até a própria vida. Mais fácil era o “carrego”de café, que exigia menor esforço e possivelmente menores riscos. Outros, normalmente as mulheres, contrabandeavam uma grande variedade de artigos, uns por encomenda, outros para vender no povo ou noutras freguesias.

O caminho para Valverde era diariamente percorrido por grande número de pessoas.

Nesta época vivia-se em Espanha a guerra civil. As populações espanholas estavam empobrecidas, destroçadas, esfarrapadas. A fome grassava por toda a Espanha. Vinham de Valverde pedir esmola a Vale de Espinho. Batiam às portas das casas com esta prece:

-AVÉ MARIA PURISSIMA. “Señora una lismona por favor; un cacho de pan; algo pa comer”.

Este era um pedido frequente nas aldeias raianas.

Vale de Espinho era uma aldeia de ignorantes politicamente. Ninguém entendia, nem discutia política. Contudo, relativamente à guerra de Espanha, a população torcia pela direita e estava totalmente a favor do Franco. Odiavam o comunismo e os comunistas.

A igreja tinha uma influência enorme neste comportamento. Rezava-se pela reconversão da Rússia e pediam a Nosso Senhor que os livrasse dos comunistas. Mesmo na escola primária, quando o professor, um dia, perguntou aos alunos quais eram as cidades principais da Rússia, um deles respondeu:

-Moscovo e Leningrado e tem uma república como a do Diabo.

Existia de fato, um sentimento anti-comunista e daí o desejo que Franco derrotasse os “Rojos.”

 Assim não pensava o Tó Balei, que era um comunista ferranho. Possuía uma certa cultura intelectual, no meio daquela ignorância. Raramente vinha à aldeia. Ninguém sabia por onde andava. Era como as andorinhas, aparecia e desaparecia sem se dar por isso. Dizia-se que esteve preso e que tinha fugido da prisão, deixando na cela um bilhete com este verso:

                             O pássaro que aqui estava

                             Não tinha asas, mas voou

                             Foi ter como senhor juiz               

                             Que ontem lhe perdoou.

Quando conversava, procurava sempre mostrar que era uma pessoa erudita. Dizia, rigorosamente, o nome e posição de todas as cidades por onde passava, se fosse de Lisboa para Moscovo. Abraçou o comunismo, com convicção. Tornou-se um elemento ativo dentro do partido e um fervoroso propagandista. Tentava aliciar a rapaziada nova da aldeia para aderirem ao partido. Era mais fácil motivar a juventude, pois sabia que, de outra forma, as suas ideias não convenceriam os mais velhos.

Fazia reuniões noturnas numa casa desabitada na BARREIRA. Sabia que a forma mais eficaz de os convencer, era prometer-lhes tudo o que eles desejavam.

Numa dessas reuniões, em que expunha todos os benefícios que obteriam se aderissem ao partido, acentuando que o partido lhes daria tudo o que desejassem, perguntava:

-O que queres tu, Zé Beites?

-Eu quero todas as colmeias de Vale de Espinho- respondeu.

-E tu, Minau, o que queres?

-Eu quero as gajas todas de Vale de Espinho.

-E tu Tó Panalo, o que desejas?

-Eu quero os dotes do Corpo Glorioso.

Ensinavam, na catequese que os dotes do Corpo Glorioso, conferiam ao possuidor, a particularidade de não ocupar espaço, não encontrar obstáculos que impedissem a entrada ou saída em qualquer lugar, aparecer e desaparecer sem ser visto. Foi devido a estas faculdades, que Jesus Cristo apareceu de repente aos apóstolos, quando estavam reunidos no Cenáculo.

O TÓ Panalo estava a ver-se entrar, durante a noite, no quarto da Isaura sem que os pais se apercebessem que tinham gente em casa, no comércio do ti Zé Clemente tirar dois quilos de açúcar e uma peixota de bacalhau e na casa do senhor Vital o mais rico da terra,” gamar ”duas notas de conto para pagar a divida ao Zé do Abílio.

-Amigos, tudo isto terão, se os comunistas ganharem a guerra -arrematou o Tó Balei.

Porém, nessa noite, sem que o esperassem, apareceu a Guarda Republicana do Soito (alguém os tinha denunciado) e ao pressenti-los, fugiram pelo telhado “oh pernas para que vos quero” e nunca mais se ouviu falar em reuniões noturnas. O Tó Balei desapareceu e as velhas do povo comentavam:

-Não deviam tê-lo deixado fugir. Tinham de o prender, porque ele é um grande “badagoneiro”.

Neste período, o contrabando tinha uma enorme importância, quer para as populações do lado de cá da fronteira, quer para as do lado lá. Dizia-se que havia, alguém, em Vale de Espinho, que tinha enriquecido com negócio das pesetas falsas.

Várias pessoas possuíam olivais em Espanha, na zona de Pesqueiro, donde vinha o azeite, consumido na povoação. Quase todo o azeite vinha de contrabando, em odres feitos de pele de cabra. Era um azeite de muito má qualidade, com elevada acidez, mas como não havia outro, tinha de se consumir. Para além do azeite, vinha também, dessas serras espanholas, mas pertencentes a famílias de Vale de Espinho, o carvão e o picão. Eram os mais necessitados que se dedicavam a esse ofício. Era um trabalho árduo, pesado e muito sujo. A sua exploração oferecia bons proventos. Vendia-se bem, pois era, depois da lenha, a única fonte de calor uma vez que, não havendo energia elétrica, tornava-se o único recurso para aquecer as salas com o picão nas braseiras e o carvão para cozinhar nos fogões.

Uma das espécies abundantes em pesqueiro era o medronheiro. Colhiam-se os medronhos quando maduros, maceravam-se na máquina de esmagar as uvas e deixavam-se fermentar a massa numa dorna. Após a fermentação, destilava-se numa “alquitarra” de onde saía uma   belíssima aguardente.

Depois da destilação, a massa que resta é muito semelhante á massa das morcelas, feitas com o sangue do porco. A semelhança é inconfundível, quer na cor quer na textura.

Por alturas do carnaval, coincidindo com a maturação dos medronhos, alguém se lembrou de encher uma tripa larga de porco, com essa massa fermentada. A tripa ficou com o aspeto de uma morcela, muito difícil de distinguir de uma verdadeira.

Como pelo carnaval se pregavam as melhores partidas, foram colocar a dita morcela no chafariz das eiras, junto da escola.

Porém, alguém foi buscar água ao chafariz e apercebendo-se que a morcela, não era morcela, levou-a para a fonte da Barreira, pensando que aí, seria mais fácil enganar qualquer papalvo. Tal não aconteceu, porque a morcela acabou por ir parar ao chafariz do adro que fica ao lado da igreja.

Por detrás da igreja, vivia a tia Isabel Pinheiro, com neto o João Pinheiro. Era um rapazote com oito anos, cujos pais o tinham entregado aos cuidados da avó. A pobreza lá em casa era extrema e a alimentação, como noutras casas, resumia-se a um caldo de batatas e um naco de  pão centeio duro,  porque assim durava mais tempo e comia-se menos, sendo muitas vezes necessário molhá-lo para o conseguir mastigar.

Aconteceu que a tia Isabel Pinheiro teve necessidade de ir ao chafariz encher um cântaro de água, uma vez que o outro já estava vazio.

Ao chegar ao chafariz, deparou-se com a morcela, colocada na resguarda do tanque, bem à mostra de quem ali passasse.

Ao olhar para a morcela, os olhos ficaram encharcados de uma enorme satisfação. O coração bateu apressado, com mais força, a alegria e o contentamento afloraram, com sorriso de uma enorme felicidade, de quem iria saborear um bom jantar. Olhou de soslaio, deitou a vista para a rua do forno do Rossio, verificou se vinha gente do adro, viu que nas casas em redor ninguém estava à janela, agarrou na morcela e escondeu-a debaixo do avental. Encheu o cântaro de água, pô-lo à cabeça em cima da” molida” e foi para casa.

Pelo caminho ia pensando na enorme surpresa que daria ao neto. Há quanto tempo não provavam uma morcelinha. Como o João ficaria louco de alegria ao saborear a deliciosa morcela. O jantar não seria só caldo de batatas não, havia conduto´; e que conduto! Sentia o João a perguntar:

-Oh Vó onde arranjou a morcela tão grande?

Ela dir-lhe-ia:

 -Foi a ti Nazaré do ti Lei Quebrado que ma deu, da matança do porco e disse-me que só a comesse contigo.

  O João ia ficar radiante de alegria. Hoje tiraria a barriga de misérias. Pensaria que era a festa do entrudo.

Chegou casa, pousou o cântaro, pôs o púcaro de barro ao lume, descascou as batatas, picou levemente a morcela e deixou cozer.

Passado algum tempo, sentiu que o João estava a chegar da escola, e ainda bem pois já tinha o caldo cozido.

Sentaram-se à mesa, a avó encheu-lhe um bom prato de caldo a transbordar e disse-lhe:

-Come filho, que hoje o caldo é muto bô. Tem morcela e no fim comes uma boa talhada.

O João arregalou os olhos, olhou para a avó estupefacto a pensar donde teria vido a morcela. Levou uma colher de caldo à boca, esgargalou os olhos, fez cara feia, vomitou para dento do prato e exclamou:

-Oh Vó, o caldo no é bô.

 A ti Isabel admirada, desgostosa e zangada com atitude do neto, disse-lhe:

– O caldo no é bô? Rais te partira, já estás com sentido da morcela. Toma lá uma talhada e cala-te. És um focinho de furão.

 O garoto agarrou num naco de pão centeio, pôs a talhada da morcela em cima, levou-a à boca, mastigou. De repente cuspiu e disse para a avó:

-É vó! A morcela também no é boa.   

-Ai o estapor. Para te negares à morcela, já tens o corpo de boa maneira! Onde andaste a comer? Olha lá, o fidalgo que nem a morcela quer.

 Este episódio rapidamente se espalhou por toda a aldeia. O João passou a ser conhecido como o “morcela girana” devido ao facto da morcela ter percorrido um grande trajecto, até chegar a casa da ti Isabel Pinheiro

Ainda hoje algumas pessoas, sobretudo por alturas do carnaval, recordam o João morcela, que foi motivo de fartas risotas. Já lá vão muitos anos….

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